O tesouro remanescente da Mata Atlântica em Florianópolis
Na Ilha de Santa Catarina há espécies de árvores centenárias que resistiram ao processo de extração e urbanização e formam um pequeno relicário daquilo que sobrou da mata primária
Elas observam as mudanças da paisagem da Ilha de Santa Catarina há centenas de anos, desde antes da chegada dos primeiros imigrantes e a criação do povoado de Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis). Retratam o início de tudo. Puxam o fio da história. Já representaram mais de 80% do território, mas hoje estão em minoria. Exploradas pela colonização e devastadas no processo de urbanização, as florestas de Florianópolis são um pequeno relicário daquilo que sobrou da Mata Atlântica preservada e passam quase que imperceptíveis a olhares desatentos que se perdem por entre as grandes construções — essas, símbolos do progresso.
O coração da mata preservada da Capital, que foi praticamente intocado durante os séculos, fica ao Sul da Ilha, em uma propriedade privada localizada na unidade de conservação Monumento Natural Municipal da Lagoa do Peri (MONA), que está sob a gestão da Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram).
Para chegar ao local, entre pausas para abrir acessos e atravessar troncos, é necessária uma caminhada de quase duas horas, sob um céu de árvores emergentes e solo úmido coberto por folhas secas. A cerca de 400 metros de altitude, os ruídos da cidade são inaudíveis, e a trilha sonora que acompanha é o canto dos pássaros e o chiado da água corrente do córrego que corta e abastece a região.
Por se tratar de um espaço importante do ponto de vista sociológico e para a biodiversidade, o local é proibido para visitação e só pode ser acessado por pessoas autorizadas. Por isso, Mauro Manoel da Costa, diretor de gestão e proteção da Floram, guiou a visita. Pelo caminho, apontou exemplares de sapopema, pau-óleo, guarapari, peroba, canela-preta e outras espécimes que formam uma composição de árvores centenárias remanescentes da Mata Atlântica. Elas representam o último estágio de regeneração da floresta.
— É um santuário florestal daquilo que sobrou das matas da Ilha de Santa Catarina — enfatiza Mauro.
Quem também acompanhou a expedição foi Talita Góes, geógrafa que analisou, na tese de doutorado, a Ocotea catharinensis, nome científico da canela-preta. Ela explica que, antes da chegada dos colonizadores, a planta em específico correspondia a um terço das espécies arbóreas da floresta, ou seja, era maioria no Estado, mas nas últimas décadas entrou para a lista das espécies ameaçadas de extinção. Por se tratar de uma árvore de crescimento lento, demorando de 50 a 100 anos para atingir a maturidade, a recuperação da espécie acaba sendo comprometida.
Durante a pesquisa de campo, a especialista encontrou pés com mais de 20 metros de altura e que estão no mesmo local há mais de 400 anos. Neste caso, a idade foi estimada medindo a circunferência do tronco a cerca de um metro do solo. Cada 2,5 centímetros equivalem a um ano de vida.
— Até o fim da década de 1970, cerca de 80% das planícies e morrarias da Ilha estavam devastadas. Ao longo da sua história de uso e ocupação do espaço geográfico, além da agricultura, principal causa do desmatamento, também houve extração de espécies para a lenha e arbóreas de valor econômico — destaca a pesquisadora.
Historicamente, a canela-preta era a árvore mais comum da Mata Atlântica de Santa Catarina, chegando a representar um terço do volume de todas as árvores existentes
Fragmentos que dão outra perspectiva à Ilha
As florestas são fragmentos da mata primária que fazem conhecer a Ilha sob outra perspectiva, fundamentada na agricultura. Quando os primeiros imigrantes chegaram, Florianópolis (que nem assim se chamava) ainda era cercada pelo verde, mas as madeiras começaram a ser retiradas para uso na construção civil, naval e moveleira, além de terem sido derrubadas para a formação de roças, pastos e engenhos, principais meios de subsistência da época.
A canela-preta e a peroba, conhecidas como madeiras de lei, formavam a “dobradinha” da extração madeireira da região litorânea catarinense, por isso, praticamente desapareceram das matas.
— Algumas igrejas mais antigas da Capital, como a catedral São Francisco, se observar o assoalho, tem sempre uma madeira mais amareladinha e outra mais escura, que é a dobradinha que faziam de canela-preta e peroba, que foram de fato as mais retiradas porque têm resistência ao tempo, já que podem durar uma vida inteira — menciona.
Apesar deste desmatamento, que foi intensificado com o início da urbanização, o Sul da Ilha teve espaços mais preservados. Talita cita que há remanescentes da mata primária em três unidades de conservação da região: no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro (Naufragados), no Parque Natural Municipal do Maciço da Costeira e no Monumento Natural Municipal da Lagoa do Peri, sendo este último o maior da Capital.
Durante a pesquisa, a geógrafa mapeou 72,8 hectares de remanescentes de mata primária na Ilha de Santa Catarina, com 415 indivíduos de canela-preta, além de outras espécies do mesmo grupo ecológico das climácicas. Somente no MONA Lagoa do Peri foram localizados 67,5 hectares de remanescente primário, sendo identificados, ao todo, 331 espécimes de canela-preta. O número atual corresponde a 1,5% da área total da unidade de conservação.
Ao contrário do Norte, no Sul da Ilha esses exemplares resistiram ao processo de extração madeireira seletiva porque, segundo Talita, os locais eram de difícil acesso e, na maioria dos casos, levava-se um dia inteiro para tirar apenas uma árvore, já que os troncos eram grandes e os trabalhadores rurais tinham apenas machados.
— Demorou muito para chegar a estrada na região, diferente do que aconteceu no Norte da Ilha, que já chegou mais cedo e o caminhão, por exemplo, que tirava a madeira. Então, aqui, era um processo mais artesanal, com carro de boi. Tem relatos que o boi chegou a quebrar o pescoço com a canga puxando madeira. Aliado a isso, tem a topografia, que é bem íngreme e tem muita pedreira. Tudo isso dificultou a retirada dessas madeiras, o que fez com que elas ficassem conservadas — contextualiza Talita.
É apenas a partir do século 20 que começa a ter um declínio no desmatamento na Capital e a Ilha, que antes apresentava um aspecto rural, passa pelo processo de urbanização, que coincide com a chegada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a empresa Eletrosul.
— Então, aquilo que antes era recurso, passa a ser fator de economia. Começamos a dar mais visibilidade para a natureza porque ela passa a ser turística. Aquela natureza que a gente desmatou, agora damos ênfase a ela — complementa Mauro.
Remanescentes da mata primária
Baú com três tesouros
Mauro resume o MONA Lagoa do Peri como um baú que resguarda três tesouros: a biodiversidade, a água e a comunidade tradicional. Após a criação de leis que proíbem o desmatamento, em 1981, o local passou a ser o Parque Municipal da Lagoa do Peri. Contudo, esta categoria faz com que o espaço torne-se de domínio público, o que significa que, pela legislação, as propriedades teriam de ser desapropriadas.
O diretor de gestão e proteção da Floram, que está na entidade desde 1987, conta que houve bastante conflito com relação a isso, já que, ao mesmo tempo, as pessoas que viviam ali, assim como as árvores centenárias, também são remanescentes e responsáveis por levar em frente a cultura ilhoa. Por isso, após algumas discussões, houve um processo de recategorização iniciado em 2013, que permitiu com que os moradores continuassem no local.
— A lei exige que, para construir, precisa de autorização, e essas autorizações são relacionadas a descendentes. Então, é um processo para manter a cultura mesmo, e para dar viabilidade econômica para essas famílias. É permitido comércios de pequeno impacto, por exemplo, para manutenção daquilo que consideramos traços culturais — exemplifica.
Talita cita que, assim como a flora, a fauna também foi bastante prejudicada no processo de desmatamento e caça. Aves como surucuá, pavãozinho, araponga e tucano sumiram da mata, além de mamíferos, como o bugio-ruivo. No entanto, com o estudo e a constatação da presença de mata primária na Capital, foi percebido que as aves foram retornando aos poucos, assim como o bugio, que pôde ser reintroduzido na floresta.
— Até a década de 1970, a caça era muito forte, ao ponto de que os ônibus aqui na Ilha andavam com bicos de tucano pendurados na frente, como se fosse um troféu mesmo — aponta.
A geógrafa diz que a regeneração da floresta foi possível, principalmente no MONA, porque a mata primária é abraçada pela mata secundária, que foi dizimada durante o desflorestamento, mas que vem se recuperando com o passar do tempo.
— Quando vemos garapuvus floridos na primavera, na verdade, estamos vendo uma mata secundária. Hoje, temos mais secundárias do que tínhamos há 60 anos. E elas são importantíssimas, porque é delas que vão se propagar [outras florestas]. Delas que surgem as sementes levadas pelos animais ou pelo vento para que as secundárias se recuperem e deem base para as primárias, ampliando e aprofundando a nossa biodiversidade — pontua.
As folhas caídas ao chão, as árvores que se fecham e formam uma espécie de copa, o sol, a lua, a fauna e a flora representam muito mais que uma linda paisagem. Esses elementos ajudam a esculpir a floresta e dar condições para que ela mantenha protegido o baú com os três tesouros.
— Aqui, temos água em abundância, mesmo em momento de seca, mas temos a garantia da água justamente pela conservação dessas árvores. Nós até podemos plantar árvores, mas não podemos plantar água, e as árvores são plantadoras de água — diz Talita.
Diante de um cenário de crise climática, onde cada vez mais há a redução dos biomas, a pesquisadora alerta para a importância da manutenção da mata primária.
— Hoje se fala muito da Amazônia, da Serra e Pantanal, mas a Mata Atlântica já está devastada muito antes disso, porque a história do Brasil é a história da Mata Atlântica. Então, mesmo após a colonização, ainda termos lugares como esse, com riqueza de ecossistemas, é muito especial. Sabemos que a floresta tende a refrescar mais. Por exemplo, entre a primária e secundária, tem diferença de 3 a 4 graus entre elas — completa.
Exemplar de Heliconia que dá cor à floresta (Foto: Lucas Amorelli, DC)Talita Góes é geógrafa e participou da expedição (Foto: Lucas Amorelli, DC)No local, árvores podem chegar a 400 anos (Foto: Lucas Amorelli, DC)Talita fez registros de plantas pelo caminho (Foto: Lucas Amorelli, DC)Pés de manacá estão espalhados ao longo do caminho (Foto: Lucas Amorelli, DC)Pés de manacá estão espalhados ao longo do caminho (Foto: Lucas Amorelli, DC)Para chegar à mata primária, foi necessário abrir alguns acessos e atravessar troncos (Foto: Lucas Amorelli, DC)Rodrigo, Mauro e Talita guiaram a visita ao MONA (Foto: Lucas Amorelli, DC)Talita Góes mapeou as canelas-preta existentes na Ilha (Foto: Lucas Amorelli, DC)Talita e Mauro acompanharam a reportagem em visita à mata primária (Foto: Lucas Amorelli, DC)Exemplar de guaraparim (Foto: Lucas Amorelli, DC)
Os guardiões da floresta
Mesmo com leis e órgãos de proteção, Mauro cita que as matas não estão completamente a salvo e que ainda existe muito desmatamento e caça ilegais. Se antes o foco eram a peroba e a canela-preta, na atualidade, é o palmito juçara. A geógrafa Talita explica que a planta é extremamente atrativa para a fauna, já que apenas um cachinho pode alimentar muitas espécies, além de ser um fator importante que ajuda a dar sombreamento às florestas.
Mauro destaca que a Floram tem diversas frentes de proteção ambiental, desde arborização e educação ambiental a licenciamentos e o departamento que cuida das unidades de conservação, ao qual está à frente. Segundo ele, no entanto, há certa fragilidade no quesito de fiscalização, já que a equipe de fiscais vem sendo reduzida com o passar dos anos, o que faz com que o trabalho seja executado apenas por meio de denúncias. Segundo ele, na década de 1990 eram 35 fiscais, agora, não há 10.
— Os problemas aumentaram e a fiscalização diminuiu — comenta.
Para além de quem faz o trabalho de fiscalizar, cita que esses espaços se mantêm por apaixonados pela causa, como ele e Talita. Mauro se autodenomina “mateiro”, não precisa de GPS para atravessar de um canto a outro e trata a natureza como uma divindade. Por ele, passaria horas dentro da mata e cita que a energia que atravessa as florestas são turbinas que estão há milhões de anos no local, o que as torna “mágicas e com poder de cura”. Abraçado a uma canela-preta, reporta:
— Sonhei com ela, mesmo antes de conhecer. Hoje tenho plantada no meu quintal.
Além da geógrafa e do diretor da Floram, o filósofo Rodrigo Dalmolin também participou da caminhada até o maior remanescente da Mata Atlântica. Hoje, “mateiro profissional”, se especializou em trilhas após perder-se no mato com uma antiga namorada. Entre uma expedição e outra, conheceu Mauro e contribuiu com a pesquisa de Talita fazendo georreferenciamento dos locais visitados durante o levantamento das espécies centenárias.
Rodrigo cita que tem autismo leve e, desde criança, sempre gostou de se embrenhar na mata, já que sente dificuldade em se relacionar com pessoas e lidar com aglomerações. Para além de conhecer os espaços em que vive e um pouco da história de quem cruzou os mesmos caminhos antes dele, a prática de caminhadas o faz conhecer a si mesmo.
— A mata pode ser um local solitário, mas eu vejo uma solidão repleta de presenças, onde as pessoas só veem árvores como indivíduos no plural, eu vejo uma multidão repleta de presenças. Só que aqui, diferente da aglomeração de pessoas onde há muitas informações que geram conflitos, aqui parece que há uma coordenação. Então eu me sinto bem vindo pra cá, porque eu consigo conectar as coisas acontecendo simultaneamente, as árvores, os processos… É um lugar que eu consigo me encontrar, encontrar a história, a geografia e a geologia da Ilha. Florianópolis é pequena, mas a Ilha é grande — cita.
Espécimes que escapam ao olhar na rotina da Capital
Uma pequena clareira em meio à mata primária (Foto: Lucas Amorelli DC)Figueira nativa miúda, de nome científico Ficus cestrifolia (Foto: Lucas Amorelli DC)Mauro e Rodrigo na trilha que dá acesso à mata primária (Foto: Lucas Amorelli DC)Guaraparim, de nome científico Vantanea compacta (Foto: Lucas Amorelli DC)À esquerda o pau-óleo, de nome científico Copaifera trapezifolia; à direita Peroba, a Aspidosperma olivaceum (Foto: Lucas Amorelli DC)Mata primária ao fundo (Foto: Lucas Amorelli DC)Mauro Costa ao lado de um Cedro, de nome científico Cedrela fissilis (Foto: Lucas Amorelli DC)O diretor da Floram, Mauro Costa mostra a cúpula da semente de canela-preta (Foto: Lucas Amorelli DC)Mauro e Rodrigo conhecem esta região como poucos. Hoje a área só pode ser acessada por pessoas autorizadas (Foto: Lucas Amorelli DC)Segundo o diretor da Floram, a caneça-preta é predominante em áreas onde a preservação acontece (Foto: Lucas Amorelli DC)Rodrigo é filósofo e “mateiro profissional” (Foto: Lucas Amorelli DC)Mauro Costa, diretor de gestão e proteção de áreas protegidas da Floram (Foto: Lucas Amorelli DC)